OBJECTO DE ESTUDO - SUSANA LOURENÇO MARQUES / JOSÉ CARNEIRO
As fotografias, os livros e o resto
Cada pessoa como um impressor e um editor, foi a expressão que William Henry Fox Talbot usou para compreender e fixar a união entre a fotografia e o livro afirmando, de modo pioneiro, o fotógrafo simultaneamente como produtor e como autor. A intensa experimentação técnica que se desenvolveu desde então, não apenas proporcionou inúmeras variações na poderosa articulação entre texto e imagem, como se tornou um instrumento fundamental para afirmar a autonomia e liberdade de um pensamento em imagens, no seio da história do livro.
Para o fotógrafo, a relação com esta forma de inscrição e migração das imagens representou, sobretudo, a possibilidade de uma efectiva influência na articulação e montagem do seu arquivo visual. Neste caso, e numa deriva frequentemente ligada à escrita, o livro transformou-se num espaço de figuração e criação de sentidos, no qual as fotografias, abandonando a sua latência, dilataram a sua portabilidade para serem vistas e lidas sem o vínculo e a exclusividade a um tempo e a um espaço.
No actual contexto de publicação fotográfica e no trânsito entre papel e ecrã, a concepção de um ensaio visual sob a forma de um livro ajusta-se, paradoxalmente, ao crescente interesse pela criação e pós-produção de edições de autor, numa próspera ligação entre a materialização do registo, fabrico e distribuição, eco do que Jorge Ribalta ironiza ao actualizar o célebre slogan da Kodak: you press the button and you also do all the rest.¹ Seguindo de perto este fenómeno e cruzando a tradição das técnicas de impressão que fazem a História da Fotografia com os processos de produção digital, no âmbito de Práticas da Fotografia², é proposto o desenvolvimento de uma investigação visual para a construção e montagem de um livro de fotografia, a par da criação de um projecto individual e original, onde se explora a diferença que a fotografia introduz no modo como se faz, como se vê, e o que se representa no interior de um livro.
A inexistência de um tema pré-definido, de hipotéticos conteúdos ou uma encomenda específica, procura impulsionar os estudantes para a reflexão sobre a definição do seu objecto de trabalho, para perceberem o fazer fotográfico como extensão de um olhar sobre o que os rodeia, adoptando metodologias adequadas à elaboração do seu projecto, antes mesmo de este se formalizar na cadência do livro.
Para deixar que o resto não seja apenas falta mas essência da montagem, todos os momentos de selecção, estudos de enquadramento, incorporação de inscrições gráficas ou arquivos e referências pessoais, adquirem especial importância ao longo do desenvolvimento do projecto, confirmando a importância de um método acumulativo, dedutivo e especulativo na sua elaboração. As correspondências, analogias ou conflitos que as imagens criam entre si, o modo como se sequenciam e se induzem ligações, a mutabilidade dos formatos, o ensaio de distâncias e escalas ou as variações de ritmo que se experimentam entre as páginas, são objecto de incessante questionamento, entendendo que o fazer e o desfazer destas maquetas, mais ou menos imperfeitas, permite ir descobrindo uma contiguidade e uma fisionomia para os livros.
Em síntese, trata-se de criar um projecto que, com exclusividade, relacione o conhecimento e singularidade dos livros de fotografia com a história individual de cada estudante, insistindo numa praxis que actualiza modos de inteligibilidade e evidência física das imagens.
No final, os livros, as fotografias e o resto apresentam-se anualmente numa exposição pública³ no Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, ensaiando um plano contínuo de imagens que se suspendem dos livros e promovem a sua livre e flutuante contemplação.
No contexto de uma Faculdade de Belas Artes, a prática fotográfica deve ser entendida numa relação transversal com os seus múltiplos campos de investigação, avivando a sua natureza intermédia e a sua tendência interdisciplinar, em conexão com o legado imagético, individual e colectivo, dos que nela estudam.
Reflectindo sobre o agitado panorama editorial em que se debate a constância e a hibridez das bibliotecas e dos livros, importa afinal que esta série de exemplares únicos, excepcionais, autoeditados e por vezes inacabados, continuem a reclamar a materialidade de um pensamento em imagens e a experimentar a legibilidade e visibilidade fotográfica para que, parafraseando o historiador Horácio Fernández, se continue a fazer livros que são fotografias e fotografias que são livros.
1. Ribalta, Jorge (2009), «Molecular Photography» in Kelsey, Robin; Stimson, Robin, The meaning of photography. Yale, Yale University Press, 2009.
2. Especificamente no segundo nível desta unidade curricular, semestral, leccionada pela autora com este programa desde 2012.
3. O título da exposição As Fotografias e o Resto é uma referência ao curso de Teoria e História da Fotografia leccionado por António Sena nas instalações da associação ether/vale tudo menos tirar olhos (Lisboa), em 1983.
Susana Lourenço Marques