As Coisas que Temos de Enfrentar por Matt Milligan

 
 
 

As Coisas que Temos de Enfrentar

POR Matt Milligan

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Quando as notícias sobre o confinamento surgiram pela primeira vez, eu estava no escritório – três andares de um então estranho e silencioso edifício ocupado por mim e, ocasionalmente, pelo senhor da limpeza. Já assim o era há uma semana e pouco. Todos os que tinham maneira de o fazer estavam a sair ou a preparar-se para sair da cidade, e o meu escritório não era exceção. 

A fuga dos que podiam ir embora foi a primeira divisão. E foi esta aparente separação de classes que revelaria, pelo menos para mim, o resto que estava para vir como uma série de intrusos – visitas não desejadas que constantemente aparecem à porta da América. Isto lembrou-me algo que James Baldwin disse, “Achamos sempre que nunca antes se viu uma dor como a nossa no mundo inteiro, até lermos.”

Apesar do que frequentemente vemos na comunicação social, 2020 não trouxe nada de novo. Estamos a passar por problemas que já estão connosco há gerações, problemas que originam de divisões. E essas divisões estão enraizadas em dinheiro, política, religião, etnias e outros assuntos dos quais não se deve falar em conversas educadas. Mas estes tabus sociais são exatamente as coisas das quais temos de falar – e enfrentar – tal como o Sr. Baldwin também disse, ou então elas vão continuar a separar-nos, vezes e vezes sem conta.

Umas semanas depois da regra de confinamento ter entrado em efeito, nós que ficámos na cidade tivemos de percorrer uma paisagem familiar mas desconhecida. O meu bairro tinha ficado tão vazio e silencioso quanto o meu escritório. Quando ia dar caminhadas ou fazer os meus recados ocasionais, fotografava as mudanças que via. Também comecei a usar a minha máquina fotográfica no interior (já que estávamos sempre em casa!); foi como uma reação instintiva ao confinamento. Comecei a ver imagens e símbolos que se repetiam, por vezes de forma subtil e por vezes de forma evidente. Percebi que, se me abrisse a estes, eles podiam reforçar os símbolos do passado de que Baldwin falara e ajudar-me a explorar o que estava a sentir e aquilo com que me deparava. Tal como Thomas Merton, um monge Trapista americano, disse, “um verdadeiro símbolo não aponta simplesmente para algo. Em vez disso, contém em si uma estrutura que desperta a nossa consciência para uma nova perceção do sentido mais íntimo da vida e da própria realidade.”

Construir estas fotografias é uma experiência catártica para mim. Põe em primeiro plano o meu ser e a “constante preocupação com o prazer e a dor... a nossa busca por esta felicidade”, nas palavras de Yoshida Kenkō, um escritor Japonês do século catorze. Também revela – felizmente – a nova consciência de Merton que, sem a sua ajuda e de Baldwin, não teria encontrado. Este processo e estes escritores ensinaram-me que, antes de me pronunciar sobre os problemas que vejo lá fora no mundo, devo primeiro olhar para dentro e enfrentar-me a mim mesmo.



Bio

Matt Milligan é um artista americano baseado na cidade de Nova Iorque e trabalha com fotografia digital e de filme. Usa fotografia e prosa para explorar experiências pessoais e a forma como estas são moldadas pelos nossos arredores, relações e sinais indiretos que encontramos no dia a dia. Emprega uma combinação de espaços interiores e exteriores – tanto físicos como mentais – nas suas imagens, que confere nuance e uma subtil complexidade emocional ao seu trabalho.

O mais recente projeto de Milligan, As Coisas Que Temos de Enfrentar, é uma reflexão pessoal sobre a vida em Nova Iorque durante a pandemia e como James Baldwin, Thomas Merton e Yoshida Kenkō, um escritor Japonês do século catorze, influenciaram a sua experiência e perceção.